domingo, 9 de abril de 2023

O BRASEIRO DO RIO CEDRON - Por Malba Tahan



      Um judeu rico e impiedoso apostou, de uma feita, em como ninguém seria capaz de passar, na época de inverno, uma noite inteira dentro do ribeiro de Cedron 

       O Cedron, tantas vezes citado no Livro Santo, não passa de um filete líquido que se esgueira pela Terra Santa a poucas milhas do Templo, triplicando, porém, o volume de suas águas durante as longas e copiosas chuvas hibernais. 

       Nesse período, a temperatura das águas baixa a tal ponto,  que seria suplício insuportável uma imersão demorada em seu lençol. 

         Propalado o singular desafio, logo se apresentou um jovem, de origem humilde, que se dispunha  a realizar a audaciosa façanha, para fazer jus ao premio prometido. 

        A mãe do rapaz, entretanto,  opunha-se ao ariscado objetivo apontando ao filho temerário os inconvenientes do perigoso banho onde ele poderia encontrar a morte, ou, pelo menos, uma grave enfermidade. A nada quis atender o tresloucado, que, às prudências maternais, contrapôs o argumento de que seria o meio único de  miséria, pois a paga oferecida pelo rico apostador iria constituir um pequeno pecúlio à sua alquebrada velhice.  

          Aceitas, afinal, a condições da aposta, encaminharam-se o milionário judeu, o destemido rapaz e a desolada mãe, seguidos das testemunhas, para as margens do Celeron. 

         E logo que o Sol entrou a descambar no horizonte,assinalando o início de novo dia judaico, o moço entrou no rio, suportando  ação frigidíssima da água, em presença da multidão que se aninhavam curiosa. Alguns populares, ansiosos por que o orgulhoso ricaço perdesse a aposta, estimulavam o moço a manter o ânimo avante:  

         - Muito bem! Coragem rapaz! O frio não atemoriza os valentes!

         Outros, porém, lamentavam, de antemão, o fim trágico  daquela temeridade: 

         - Não estará com vida aos despontar o Sol! 

         Como andar da noite, retirou-se o ricaço com grande parte da assistência, a quem o espetáculo se tornava monótono, permanecendo, apenas, as testemunhas da aposta, protegidas   por bons agasalhos e a mãe do jovem que, da margem do rio, de quando em vez, quebrava  o silêncio com sua voz débil e chorosa, a chamar, em aflitivo desespero, pelo filho dedicado que, metido na água até o pescoço,lutava contra o frio impiedoso que lhe gelava os membros. 

            As horas se alongavam para a infeliz e para o destemido moço numa trágica e torturante lentidão. E alta noite a temperatura baixava tanto que a mísera anciã, sem o  menor abrigo, não dispondo de xale ou simples manta, se lembrou que poderia aquecer-se a uma fogueira. E apanhando aqui e ali alguns gravetos e dois punhados de folhas secas, acendeu um pequeno braseiro; só assim pôde, aconchegada ao tímido calor, resistir ao vento gélido e cortante que varria, desoladamente, os campos da Judeia. 

           A rubra luz do Sol, erguendo-se no horizonte, pôs termo. enfim, à dolorosa aposta. Foi o rapaz retirado de dentro do rio por alguns amigos, já regelado, semimorto, e do estranho desafio proclamado vencedor.  

             Juntamente com as testemunhas dirigiram-se todos à casa do rico israelita,autor da aposta, a quem tudo narraram.  Um dos presentes exaltou a extraordinária dedicação materna: 

           O Frio era tão intenso, senhor, que a pobre velha, para não abandonar o filho viu-se forçada a acender um braseiro.  

             - Como? - estranhou o milionário - a mãe do rapaz acendeu uma fogueira? 

             - Fiz, sim, com umas poucas brasas -confirmou a boa velhinha.  

             - Nesse caso - retorquiu o pérfido ricaço, em tom enfático - não pago coisa alguma. Foi um ardil de que ela lançou mão para aquecer o filho e abrigá-lo, também, do frio. Está, portanto, nula a aposta. 

           A escusa cínica do judeu, o desprezível motivo que alegava, não tinham nenhum cabimento. Como poderia um pequeno braseiro à margem do Cedron aquecer quem estava mergulhado nas frias águas do rio?

          O rapaz não se conformou com a recusa, e a conselho de  amigos, recorreu ao juiz d cidade.

          O digno re respeitável magistrado, depois de ciente do caso pelas inúmeras testemunhas; depois de ouvir as razões alegadas pelos litigantes, reconheceu, por sentença, contra a opinião unânime do povo, que o direito estava do lado do rico e a aposta não devi a ser paga.  

            Filho e mãe, desapontados com o julgamento não hesitaram em recorrer ao Tribunal Superior denominado "Câmara dos três juízes". Atendendo o argumento do réu milionário o Tribunal conformou a sentença proclamando que o braseiro à margem do Cedron aquecia as águas impiedosas do rio. Essa iniquidade não desanimou os dois infelizes e a questão foi levada à "Corte de Apelação", tribunal de alto prestígio, onde mais de tinta juízes, depois de longos e eloquentes arrazoados julgaram boa e decisão anterior. Restava,agora, como último recurso, o Tribunal dos Setenta ancião, ao qual os interessados levaram a demanda que devia ser discutida e julgada em presença do rei Davi e do príncipe Salomão.  

             Salomão era nesse tempo muito jovem e iniciava a sua carreira; dotado, porém, de inteligência agudíssima, compreendeu logo pelos comentários que eram feitos que os Setenta Anciãos estavam inclinados a favor do rico, e que mais uma vez a iniquidade da sentença inicial seria confirmada. 

           A ameaça daquela clamorosa injustiça revoltou o jovem príncipe.  

           Antes, pois, de ser iniciado o julgamento do célebre pleito, Salomão convidou o rei Davi, seu pai, e os venerandos juízes do alto Tribunal para um grande banquete.

           Aquele convite do príncipe foi recebido com visível demonstração de alegria. 

           - Agradecemos o banquete - diziam alegremente os juízes - São sempre apetitosos os manjares da corte do rei Davi! 

           Aconteceu, porém, que o banquete, oferecido por Salomão, começou a demorar. 

           Em dado momento o rei Davi, já impaciente, reclamou: 

           - Mas, afinal, quando pretendes anunciar esse banquete? 

           - Senhor - desculpou-se Salomão - a comida ainda não está pronta. É  bem possível que dentro de alguns momentos possamos saborear o banquete.

           Passaram-se, porém, mais duas horas. Os juízes famintos murmuravam irritados com a demora. O rei Davi, protestou com energia: 

             - Que fazem os servos que não preparam logo os manjares? 

             - Rei Davi - explicou Salomão com voz sombria e arrastada - Acabo de ser informado, pelos nossos auxiliares, de que na cozinha de vosso palácio está ocorrendo um caso altamente misterioso que não consigo decifrar. O fogo, por mais forte que seja, não é suficiente para aquecer a comida!

            - Como assim - estranhou o rei Davi num vozeirão soturno - Que fogo é esse que não aquece comida? 

               - Convido-vos, ó rei - sugeriu logo Salomão com alvoroço, convido-vos, juntamente com os vossos esclarecidos juízes, a admirara estranha ocorrência. 

              O rei Davi e os setenta juízes, levados por Salomão, foram até as cozinhas do palácio.  Ali chegados, viram, com assombro, sobre uma larga prancha, os manjares do banquete, inteiramente crus dentro das panelas ou enchendo os grandes caldeirões; à pequena distância vários fogões e fogareiros, bem acesos, lançavam inutilmente  as suas labaredas para o ar. 

               - Que loucura! - protestou, num tom meio jocoso, o rei  Davi - Como pretendes aquecera comida se o fogos  está aqui, de um lado, e as panelas estão a três passos, do outro lado! Isso é um disparate!

              - Em terras de Israel - ponderou gravemente Salomão - deve ser tida como muito acertada a disposição que se observa aqui. A nossa sábia justiça proclamou, em várias sentenças , reconhecidas como justas pelos mais íntegros doutores, que um insignificante braseiro, nas margens do Cedron, é suficiente para aquecer a um homem imerso na água gelada desse rio. Ora é evidente que as chamas destes enormes jogões e fogareiros deverão forçosamente aquecer as panelas que estão a dois passos deles. 

               O rei Davi e os setenta anciãos reconheceram a fina alegoria  do inteligente príncipe. E, nesse mesmo dia, reformaram a sentença injusta e declararam que o rico apostador era obrigado a pagar ao jovem o prêmio fixado, acrescido de uma pesada multa. 

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NOTA: Cfr. Nicolau Rodrigues. Ob. cit., pagina 280. L. Randon "Sagessede Salomon" (Apocryphes de I'Ancien Testament". São igualmente dígnos de atenção os dois contos: "Salomon et grillon" e "Salomon et  Asmodée", citados por A. Weil em seu livro "Contos et légendes d'Isrel", Lib. Nathan, 1928, pagina 53 e ss.

 

 

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