sexta-feira, 31 de março de 2023

A ALMA E O CORPO

 

           Como vigias de um belíssimo pomar, pôs o príncipe Tavir um cego e um coxo. Cumpria ao cego, dotado de ouvido muito apurado, gritar ao mais leve rumor, e  coxo devia estar sempre atento e vigilante para surpreender qualquer intruso. O príncipe, recomendou-lhes, sobretudo, que guardassem, com maior cuidado, os frutos da ameixeira, precisos frutos em verdade. 

         Refletiu o príncipe: 

         - Não serei roubado por esses guardas. Um é cego e não vê os frutos maduros; o outro é coxo e não os poderá alcançar.  

        Durante as horas de vigia,o coxo, com palavras exuberantes  e comparações fantasiosas, descreveu ao cego os deliciosos frutos de que as árvores estavam pesadas. 

         Insinuou o cego em tom meio cauteloso: 

         - Que fazemos nós de não os colhermos? 

         E como apanhá-los, meu amigo - Lamentou o coxo - Tu és cego e eu mal posso andar.  

         - Não passas de um tolo! - obtemperou o cego -  Arrasta-te, se puderes, até aqui, pois já encontrei o meio de resolvermos o caso. 

        Arrastou-se o coxo até o lugar em que se achava o cego: este colocou o aleijado às costas e guiado por ele, pode aproximar-se da ameixeira mais carregada. Aí o coxo colheu muitas frutas que ambos saborearam.  

         Horas depois o príncipe foi observar o pomar e certificar-se da eficiência dos novos vigilantes.   Ao primeiro golpe de vista nas suas árvores prediletas percebeu que havia sido roubado. 

         Era preciso descobrir os culpados. Interrogou os guardas. 

          - Senhor! - declarou o coxo com fingida humildade - como poderia eu saquear uma árvore, alcançar-lhe os galhos se mal posso me arrastar de um canto para o ouro? 

          - Muito bem! - concluiu refletidamente o príncipe.  - Não duvido que estejam ambos inocentes. 

              Tendo, porém, meditado sobre o caso descobriu logo  o ardil que os seus desonestos empregados haviam posto em prática. Chamou dois guardas e ordenou que colocassem o coxo às costas do cego e aos dois (assim agrupados) mandou, com ferina decisão, aplicar uma série de bastonadas. 

               Assim, também, no dia do Juízo, a alma dirá, para justificar os seus erros: 

              - Só o corpo é culpado: só ele cometeu o pecado. Quando nasci, voava puríssima como um pássaro.

             E o corpo, receoso do castigo, insistira com momices na voz e no gesto: 

              - Senhor! Só a alma é culpada; ela é que me impelia à infâmia e ao pecado; eu, pobre de mim, nada fiz! Como poderia incidir no erro se a alma não me animasse? 

            E Deus, o Supremo Juiz, colocará de novo a alma dentro do corpo e dirá: 

            - Eis aqui como haveis pecado. E, assim, só assim, será feita Justiça!

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Robot, pagina 169, 2. Cfr. R. Cassino-Assens, ob. cit., pagina 232. 

Essa belíssima parábola é atribuída ao famoso Rabi Jochanan Ben Zacai, discípulo do Grande Hillel. Achava-se o Rabi Jochanan em Jerusalém quando essa cidade foi atacada e destruída por Tito. Cfr. Moisés Beilinson. ob. cit., pagina 117.

 

 

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