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Tristezas do inferno me cingiram, laços de morte me surpreenderam.
Na angústia invoquei ao Senhor e clamei aos meu Deus; desde o seu templo ouviu a minha vós, aos seus ouvidos chegou o meu clamor perante suas faces.
Era um dia de sábado, ao anoitecer. Havia já algumas horas que o doutor Meir se entretinha na escola pública explicando a Santa Lei e seus numerosos discípulos. Deleitavam-no aqueles estudos e a religiosa atenção com que suas palavras eram ouvidas.
Sua casa, entretanto, durante aquelas fugidias horas, hospedara o luto e a desesperação. Dois de seus filhos haviam morrido quase de repente e, de sua família, só a desolada mãe permanecia para chorar aos pés dos dous cadáveres. Infeliz mulher! Petrificada pela dor, contemplava imóvel aqueles dois corpos buscando neles, em vão, alguns indícios de vida; e vinha-lhes à mente o pobre marido que dentro em pouco iria defrontar o tremendo espetáculo. O respeito à vontade divina e a caridade de esposa deram à mísera uma força de alma. As maternas mãos estenderam um lençol sobre aquele leito de morte onde os filhos amados repousavam. Cumprindo o piedoso mister a trise mãe passou-se ao quarto vizinho à espera do marido.
A note descer lentamente . Já, estrelas, sem conta, luziam pelas alturas sem fim. Volveu à casa o doutor e apenas transposta a soleira, indagou da sua esposa um tanto perturbado:
- E os filhos?
- Terão ido à escola - respondeu a mulher com voz trêmula e sumida, fitando o céu, evitando o olhar do marido.
- Parece que não os vi entre os alunos.
A mulher, sem lhe responder, apresentava-lhe o vinho e o círio para i Avdalá com que implorar as bênçãos do céu para a nova semana.
Cumpriu o doutor o religioso ato e com crescente ânsia bradou:
- Mas e os filhos, mulher!
- Saíram talvez para alguma incumbência familiar.
Isto dizendo punha diante do marido há longo tempo em jejum, umas fatias de pão.
Provou o doutor um pedacinho e tendo dado graças a Deus, a quem devemos todos os bens terrenos, exclamou:
- Como tardam hoje os nossos filhos! Sempre é certo que não sabes de nada, ó esposa minha? Por que me pareces tão triste?
- Eu, meu esposo, preciso de um conselho teu.
- Que é?
Ontem um amigo nosso me procurou e deixou sob minha guarda algumas joias. vem ele agora reclamá-las. Ai de mi ! Não contava que viesse tão cedo. Devo restituí-las?
- Ó minha esposa! Essa dúvida é pecaminosa!
- Mas já me afizera tanto àquelas joias!
- Não te pertencia.
- Mas eu queria-lhes tanto bem. Talvez tu também...
-Ó mulher! - exclamou atônito o marido que começava a penar, com temor, nalguma coisa estranha e terrível - Que dúvidas! Que penamentos! Sonegar um depósito, coisa sagrada!
- É isso mesmo - balbuciava chorosa a mulher - Muito preciso de teu auxílio para fazer esta dolorosa restituição. Vem ver as jóias depositadas.
E as suas mãos geladas tomaram das mãos do atônito marido e conduziram-no à câmara nupcial e ergueram as franjas do lençol fúnebre.
- Aqui estão as joias. Reclamou-as Deus!
Diante da quela visão o pobre pais prorrompeu em grandíssimo pranto, e exclamou golpeado pela dor:
- Ó filhos meus, filhos de minha alma, doçura da minha vida, luz dos meus olhos, é meus filhos!
- Esposo meu. Não disseste, há pouco que é forçoso restituir o depósito quando reclama o seu dono legítimo?
Com os olhos marejados de lágrimas o sábio fitou a esposa cheio de admiração e de inefável ternura.
- Ó meu Deus - suspirou - Posso eu balbuciar alguma queixa contra a Tua vontade? Deste-me, para escudo de minha vida, uma esposa religiosa e santa!
E os dois infelizes prostraram-se a um só tempo, e por entre lágrimas repetiram as santas palavras de Jó:
- "Deus deu, Deus tirou. Bendito seja o seu santo nome!"
Este belíssimo conto figura em Yalkut, pagina 145. Cfr. Léon Berman, ob. cit., pagina 70. Vamos encontrar essa mesma narrativa em "Mar de histórias" de Aurélio Burque de Olanda e Paulo Ronai, numa excelente tradução do erudito Rabino Dr. H. Lemle.
Procure no vocabulário as palavras: Meis e Avdalá. Ao relatar o caso em tamudista acrescenta: "Havia epidemia na cidade e, ao sair de casa, pela manhã, notou o Rabi que seusfilhos estavam triste e abatidos".
Bem diversa é a forma adotada no livro O talmude" de Moisés Beilinson e Dante Lettes, tradução de Vicente Ragognetti, pagina 55.
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