Esta é uma das muitas lendas Israelitas inspiradas na vida exemplar e misteriosa do milagroso Baal Schem. Aqui é apresentada segundo a narrativa feita pela jovem professora I.V., figura de prestígio no magistério e reconhecida autoridade em assuntos relacionados com as tradições judias.
O justo florescerá como uma palmeira, como o cedro do Líbano crescerá.
Vindo no sentido contrário ao nosso, aproximou-se um ancião que se arrastava penosamente, apoiado em um grosseiro bastão.Menos pelos trajes que lhe cobriam o corpo do que pela fisionomia triste, abatida, podia o observador vulgar perceber que o pobre velho trazia sobre os ombros o peso de uma vida cheia de sofrimentos e desenganos.
Sensível à angústia alheia levei, quase maquinalmente, a mão à algibeira onde, pela graça de Deus, sempre encontrei uma moeda co que socorrer o infortúnio que esmola nas vias públicas. O jovem Davi Cohn, que vinha a meu lado, ao dar tento no meu gesto tocou-me de leve no braço e disse-me em voz baixa:
- Não, meu caro "góim"! Não penses em dar o teu generoso óbolo a esse mal-aventurado ancião!
A surpresa que me causou aquela estranha advertência não passou despercebida ao meu companheiro. Que motivo teria ele, afinal, para, evitar que eu socorresse, o trôpego e senil mendigo! Estaríamos, acaso, diante de um desses charlatões que se disfarçam com sórdidos andrajosos para explorar a caridade pública?
E, no momento em que eu pretendia interrogá-lo sobre o caso, Davi Cohn tirou respeitosamente o chapéu e dirigiu-se em yiddish, o esfarrapado desconhecido, uma saudação solene como se tivesse diante de si o grão-rabino ou um dos doutores da Sinagoga.
Pelas barbas de todos os profetas! Aquele pobre diabo que creditava ser um mísero pedinte era, por certo, um dos judeus mais ilustres da cidade...
E, entretanto que o velho se afastava no seu andar pesado e claudicante, punha-me eu a meditar naquele mistério que circundava a fantástica existência. Vivia na penúria e não podia valer-se da caridade alheia!
Adivinho e justifico a tua curiosidade - disse-me, por fim, o meu companheiro. - Queres com certeza, saber quem é esse pobre velho que eu acabo de saudar com tanto acatamento. Vou contar-te o que ouvi há três anos, de um sábio talmudista:
* * *
Dois meninos Samuel e Nathan, quando ainda frequentavam os bancos escolares, ligados pelos laços da mais terna amizade, fizeram um pacto solene: aquele que se achasse, algum dia, em situação próspera seria obrigado a auxiliar o outro.
Unidos, assim, por esse mútuo juramento atiraram-se na luta incerta pela vida.
Amontoaram-se os dias; sucederam-se os meses; correram os anos.
Nathan, beneficiado por uma herança, estabeleceu-se no comércio e, bafejado por bons ventos, enriqueceu. Samuel, entretanto, não foi feliz. Tentou vários meios de vida, mas sem resultado. Os contratempos da má sorte pareciam não quererem afastar-se da soleira da sua casa.
Ocorreu a Samuel a aliança feita sob a égide do teto colegial, vindo-lhe a lembrança de pedir o auxílio do antigo condicípulo que era, então, um dos mais fortes comerciantes da cidade.
Com decepcionante espanto ouviu de Nathan a mais formal e impiedosa recusa.
- Não me lembro de ter feito pacto algum contigo, e teria sido leviandade, se não estultícia, assumir tão estúpido compromisso o que o mais rudimentar bom senso repele e anula. Certo estou de que essa invencionice não passa de um plano mal alinhavado com que pretendias extorquir de mim algum dinheiro. Nesse ponto, porém, estás completamente iludido, e não levas nem meio "copeque".
O procedimento desleal e egoísta de Nathan abalou profundamente o espírito de Samuel. Jamais poderia ele imaginar que seu amigo se houvesse daquele modo indigno e revoltante, negando, com tamanho cinismo, um ajuste feito sob a invocação do Eterno e transformando tão ingênuo movimento de seu coração num propósito que só ditam caracteres denegridos pela baixeza e pela desonra.
* * *
O destino encerra, porém, as sábias lições que Deus procura transmitir aos homens.
Com o andar dos meses modificou-se por completo a situação econômica dos dois amigos.
Auxiliado por um sócio inteligente e dedicado, Samuel conseguiu realizar grandes negócios e ganhar muito dinheiro. Nathan, em consequência, de um naufrágio, ficou de um momento para outro atirado à mais completa miséria e crivado de dívidas. Lembrou-se, nessa conjuntura, do pacto firmado entre ele e Samuel e resolveu apelar para o amigo.
Recebeu-o com simpatia o bom Samuel e disse logo:
- Não poderia jamais esquecer, amigo Nathan, o pacto que fizemos, sob tão feliz inspiração. Asseguro-te que empregarei os maiores esforços e não medirei sacrifícios para auxiliar-te.
E o generoso Samuel convidou Nathan a vir com a família hospedar-se em sua casa durante aquele período de crise.
Certo dia, com aceso interesse, Nathan procurou Samuel:
- Caro amigo, surgiu uma grande oportunidade e quero valer-me dela. Preciso de oitenta rublos pata uma transação urgente. Podes emprestar-me essa quantia?
- Com o maior prazer - aquietou Samuel, com afável serenidade.
E Nathan prontamente obteve do prestimoso amigo o dinheiro de que precisava.
* * *
Dez anos depois o quadro da vida de ambos sofria nova e radical transformação.
Impelido por uma aragem de sorte torna-se Natahan um dos mais ricos banqueiros da Polônia, e, Samuel, tendo fracassado em várias empresas, achava-se novamente braços com a mais negra miséria.
E o pobre Samuel pensou:
- Desta vez Nathan não deixará de auxiliar-me pois já teve ocasião de valer-se do pacto que existe entre nós.
Depois de várias tentativas malogradas, conseguiu, afinal, chegar à presença do próspero banqueiro.
Ao ouvir falar no pacto, Nathan, amordaçando segunda vez a consciência, atirou à car do amigo estrepitosa e humilhante gargalhada:
Já não é nova essa léria (conversa astuciosa) meu velho. Voltas a esse plano idiota de obter dinheiro. Pacto! Pacto! Forte asneira! Como poderia eu comprometer o meu futuro com um pacto dessa natureza? Julgas-me, então, algum imbecil disposto a emprestar dinheiro a negociantes falidos e arruinados?
Samuel, ao perceber que Nathan fazia-se de esquecido, cortou-lhe o aranzel dizendo-lhe, num desabafo:
- Já que a tua memória é fraca e mais fraca a tua dignidade para conservares os compromissos e as dívidas de honra, vê se te lembras, ao menos, de que me deves a quantia de oitenta rubros que de minhas mãos recebeste, a título de empréstimo, quando vivias, a minha custa, com tua família, em minha casa.
- Estás delirando, Samuel - atalhou Nathan com um sorriso amarelo nos lábios, sacudindo os ombros enfadado.
- Quem poderá crer que um banqueiro milionário haja recebido dinheiro de um pobre diabo como tu!É de assombrar a pieguice da ideias! Peço-te que não me apareças mais, pois não disponho de tempo a perder com conversa fiada.
* * *
Tão abalado ficou Samuel com a infame conduta de Nathan que adoeceu gravemente e, ao cabo de poucos dias,a morte vinha buscá-lo com se o quisesse livrar dos grandes desgosotos e amarguras que lhe acabrunhavam a existência.
A alma de Samuel - reza a lenda - levada para o Céu, foi ter à presença do profeta Elias.
- Samuel! - proferiu o profeta - foste sempre na vida um homem justo e bom. Cabe-te, pois, pela vontade do Eterno, uma recompensa no Céu. Pode formular, se quiseres o pedido de algum bem a ser realizado no mundo, entre os teus amigos e parentes. Fala Samuel, e o Eterno ouvirá a tua voz.
Surpreendido por aquelas palavras, respondeu Samuel numa inflexão alta e resoluta:
- Senhor, eu nada fiz para merecer tão grande recompensa da misericórdia do Santo. Julgo, entretanto, que me ocorre o dever de aproveitar a oportunidade que me ofereceis, para salva um amigo que deixei na Terra. Esse amigo chama-se Nathan. Foi mau e ingrato para comigo e estará, com certeza, condenado ao eterno castigo nos abismos do Inferno. Desejo, pois, voltar ao mundo sob forma de mendigo, para reaver de Nathan uma quantia que me é devida. Quero receber a dívida "copeque" por "copeque". Certo estou de que Nathan, em se lhe oferecendo ensejo, se desobrigará de um compromisso sagrado, penitenciando-se para assim poder alcançar a eterna salvação!
Retorquiu o profeta Elias com precipitada vivacidade:
- Se é para cobrar uma dívida de honra é inútil a tua volta ao mundo. Farei com que teu filho mais velho, que vive modestamente, fique reduzido à miséria e vá esmolar, todos os dias, à porta da casa de Nathan.
- Senhor - discordou Samuel - estou apercebido de valor para sofrer todas as angustias, mas não tenho coragem suficiente para ver aflito um filho amado! Deixa-me, senhor, voltar ao mundo para salvar o amigo!
E Samuel, atendido em seu desejo, tornou à paragem dos mortais no corpo de um mendigo.
* * *
Um dia achava-se Nathan absorvido em seus múltiplos negócios bancários quando ouviu intensa bulha no corredor que conduzia à escada principal.
Chamou um dos empregados e interrogou-o sobre o que se passava.
- É um pobre que veio pedir esmola - explicou o interpelado. - Queremos dar-lhe dois "copeques" mas ele não os aceitou. Diz que não se retira da porta do banco enquanto não receber uma esmola das mãos do próprio chefe Nathan.
- Pelo que vejo - considerou o banqueiro - temos hoje, como novidade, um mendigo, ousado e caprichoso. Cada doido com sua mania! Se Samuel já não tivesse morrido há tanto tempo, eu juraria que era ele que vinha importunar-me outra vez com o tal pacto.
E, depois de meditar um instante, ordenou um de seus auxiliares:
- Manda vir imediatamente o tal mendigo até aqui.
Momentos depois o mísero pedinte foi levado à presença do milionário.
- Que desejas de mim, meu velho? - perguntou Nathan emprestando à voz metálica um tom maldoso de ironia e sarcasmo.
- Quero apenas, senhor, receber de vossas mãos a esmola de um "copeque" e virei aqui, se permitires, todos os dias!
- Esta é de se lhe tirar o chapéu! Não faltava mais nada! Julgas, então, miserável, que eu disponho de tempo suficiente para atender a tipos da tua espécie? Pensas, por ventura, que eu vou interromper os meus negócios e lucubrações (meditação) para dar esmolas aos sujos que aqui vem mendigar?
E ajuntou irado, aflautando a voz:
- Quereis receber uma esmola de minhas mãos? Pois, bem. Vais recebê-la, não das minhas mãos, mas de meus pés!
E, puxando o velho pela gola do esfarrapado gibão, degraus abaixo imprimindo-lhe violento pontapé.
O mendigo gravemente ferido em consequência da queda, poucos dias depois falecia.
* * *
Algum tempo havia decorrido quando chegou ao conhecimento de Nathan que se achava na cidade o famoso rabi Baal Schem que realizava surpreendentes milagres e lia o destino dos homens.
Nathan, interessado em conhecer o sábio rabi, foi procurá-lo.
No momento em que o banqueiro chegou, proferia o santo a prece que se denomina "shimeshi". Essa prece, como é notório, não pode ser interrompida, razão porque o poderoso Nathan foi obrigado a esperar que Baal Schem chegasse ao fim do capítulo.
Que desejas de mim, meu filho? - inquiriu bondoso o rabi - Que tens a pedir?
Nathan, orgulhoso e descrente, emendou com arrogância:
- Senhor, eu nada tenho a pedir. Sou rico, poderoso e sinto-me bem na vida. Todos os meus desejos estão satisfeitos. Aqui vim unicamente para conhecer-vos e trazer alguns rublos para os vossos pobres.
- Se assim é, meu filho - condescendeu o rabi, em tom displicente, sem lhe largar os olhos - escuta com paciência o que vou te dizer.
- Baal Schem, inspirado por Deus, contou ao milionário a história do pacto com todos os pormenores, até à morte de Samuel, sob o disfarce de um mendigo, no hospital.
À proporção que se desenrolava a narrativa um terror indefinível apoderava-se de Nathan. Tremia-lhe o corpo como se tivesse invadido repentinamente as mais perniciosas sezões (doenças), enquanto o rosto espavorido se lhe tornava lívido como o de um cadáver. Passava e repassava a mao pela cabeleira grisalha empastada de suor. Percebeu que o rabi, senhor de todos os segredos, desfiava as baixezas, pecados e ingratidões de sua vida.
E o rabi, ao concluir a narrativa, percebendo o efeito de suas palavras, voltou a perguntar-lhe com ironia patente na expressão:
- Então meu filho? Continuas na ilusão de que nada tens a pedir?
* * *
Ao deixar a presença do milagroso Baal Schem, Nathan estava completamente mudado. Vendeu tudo o que possuía, distribuiu todos os seus bens pelos pobres e partiu pelo mudo a socorrer os infelizes e a praticar o bem. Tornou-se um bom, um justo. O sacrifício de Samuel não fora inútil. Nathan encontrara no arrependimento o caminho da eterna salvação.
* * *
Posso concluir, ó meu caro "góim"? Posso concluir? Esse velho, andrajoso, cujo aspecto infundia lástima e que há pouco cruzou o nosso caminho, era exatamente Nathan, aquele que fora outrora o mais temido dos banqueiros judeus.
Bem dizia Hilel, o santo:
- Por mais rico, por mais poderoso, por mais forte e mais feliz que seja o homem, terá sempre cem mil coisas a pedir a Deus.
- Scholem Aleicheim!
NOTA: Esta é uma das muitas lendas israelitas inspiradas na vida exemplar e misteriosa do milagroso Baal Schem.
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