sexta-feira, 31 de março de 2023

O RICO E O POBRE

 

    

        Dois judeus, um pobre e um rico, aguardavam a hora de consultar um famoso "zaddik". O rico foi admitido primeiro e a sua audiência durou bem mais de uma hora. E o pobre, recebido afinal, depois daquela longa espera, teve apenas alguns minutos de atenção. 

        - Rebe, isto não é justo! - bradou ele, numa tentativa de protesto, com uma flama no olhar. 

        - Idiota! - repreendeu o "zaddik", todo ufano com um leve requebro da cabeça - Quando entraste, percebi, à primeira vista, o quanto é pobre, resignado e sofredor: mas tive de escutar o outro uma hora inteira para descobrir que ele é muito mais pobre e bem mais infeliz do que tu. 

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Este episódio anedótico pode ser lido em Lewis Browne, ob. cit., pagina 407. "Vários zoddikins - observa Browns - revelaram-se homens de alto valor: sérios, bondosos e, na sua ingenuidade assombrosa, dotados de sabedoria profunda". A anedota "O rico e o pobre" põe em justo relevo a presença de espírito de um engenhoso zaddik.

A ALMA E O CORPO

 

           Como vigias de um belíssimo pomar, pôs o príncipe Tavir um cego e um coxo. Cumpria ao cego, dotado de ouvido muito apurado, gritar ao mais leve rumor, e  coxo devia estar sempre atento e vigilante para surpreender qualquer intruso. O príncipe, recomendou-lhes, sobretudo, que guardassem, com maior cuidado, os frutos da ameixeira, precisos frutos em verdade. 

         Refletiu o príncipe: 

         - Não serei roubado por esses guardas. Um é cego e não vê os frutos maduros; o outro é coxo e não os poderá alcançar.  

        Durante as horas de vigia,o coxo, com palavras exuberantes  e comparações fantasiosas, descreveu ao cego os deliciosos frutos de que as árvores estavam pesadas. 

         Insinuou o cego em tom meio cauteloso: 

         - Que fazemos nós de não os colhermos? 

         E como apanhá-los, meu amigo - Lamentou o coxo - Tu és cego e eu mal posso andar.  

         - Não passas de um tolo! - obtemperou o cego -  Arrasta-te, se puderes, até aqui, pois já encontrei o meio de resolvermos o caso. 

        Arrastou-se o coxo até o lugar em que se achava o cego: este colocou o aleijado às costas e guiado por ele, pode aproximar-se da ameixeira mais carregada. Aí o coxo colheu muitas frutas que ambos saborearam.  

         Horas depois o príncipe foi observar o pomar e certificar-se da eficiência dos novos vigilantes.   Ao primeiro golpe de vista nas suas árvores prediletas percebeu que havia sido roubado. 

         Era preciso descobrir os culpados. Interrogou os guardas. 

          - Senhor! - declarou o coxo com fingida humildade - como poderia eu saquear uma árvore, alcançar-lhe os galhos se mal posso me arrastar de um canto para o ouro? 

          - Muito bem! - concluiu refletidamente o príncipe.  - Não duvido que estejam ambos inocentes. 

              Tendo, porém, meditado sobre o caso descobriu logo  o ardil que os seus desonestos empregados haviam posto em prática. Chamou dois guardas e ordenou que colocassem o coxo às costas do cego e aos dois (assim agrupados) mandou, com ferina decisão, aplicar uma série de bastonadas. 

               Assim, também, no dia do Juízo, a alma dirá, para justificar os seus erros: 

              - Só o corpo é culpado: só ele cometeu o pecado. Quando nasci, voava puríssima como um pássaro.

             E o corpo, receoso do castigo, insistira com momices na voz e no gesto: 

              - Senhor! Só a alma é culpada; ela é que me impelia à infâmia e ao pecado; eu, pobre de mim, nada fiz! Como poderia incidir no erro se a alma não me animasse? 

            E Deus, o Supremo Juiz, colocará de novo a alma dentro do corpo e dirá: 

            - Eis aqui como haveis pecado. E, assim, só assim, será feita Justiça!

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Robot, pagina 169, 2. Cfr. R. Cassino-Assens, ob. cit., pagina 232. 

Essa belíssima parábola é atribuída ao famoso Rabi Jochanan Ben Zacai, discípulo do Grande Hillel. Achava-se o Rabi Jochanan em Jerusalém quando essa cidade foi atacada e destruída por Tito. Cfr. Moisés Beilinson. ob. cit., pagina 117.

 

 

quinta-feira, 30 de março de 2023

ESPOSA MODELO

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           .... e onde quer que tu fores irei eu; onde quer que tu pousares à noite, ali pousarei eu; o teu povo é meu povo, e o teu Deus é o meu Deus. 

Retirado de O Livro de Rute I, 16

              - Havia em Sidon, em época esquecida nas brumas do passado, uma mulher chamada Raquel. Era boa, paciente e simples. Casou-se muito jovem e viveu dez anos em perfeita harmonia com seu marido. Dez anos esteve casada sem ter o lar alegrado com a presença de um filho.

         Ora, o Livro de Moisés, em relação aos casamentos estéreis, não deixa margem para a menor dúvida: - "Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos pode o marido requerer o divórcio." E o divórcio é, portanto, imposto em face da Lei. 

        O grande ideal de Raquel era ter vários filhos, ou, ao menos um filho. Mas esse filho tão desejado não veio. 

        Decorridos os dez anos e mais dez dias o marido, bastante constrangido, disse à meiga Raquel:  

        -Há dez anos, querida, estamos cansados e não recebemos, em nosso lar, até agora, a bênção de um filho. Triste,bem triste será para mim morrer sem deixar, sobre a terra, um herdeiro de meu nome! Que fazer querida?

        Raquel não respondeu. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Amava o seu marido e sabia que era amada, muito amada por ele. Com o espírito dilacerado de aflição disse-lhe com sua voz aveludada e branda:  

      - O caso é simples. Vamos procurar o Rabi Simeão. Ele decretará, hoje mesmo, o nosso divórcio. 

        Encaminhou-se o casal para a residência do famoso Rabi Simeão Ben Yohai que o povo apelidara "o muito sábio". 

       A alegação do marido era irretorquível diante da Lei. A boa Raquel sabia e já estava conformada com a sua triste sorte. 

         Rabi Simeão, sereno e melancólico, depois de ouvir os cônjuges, condicionou: 

        - A vossa união (lembro-me bem!) foi celebrada com um banquete: exijo que da mesma forma seja celebrada a vossa separação. 

          E, voltando-se para o marido, acrescentou num tom repousado e firme: 

          - Imponho, entretanto, u a condição. Terminado o banquete terá Raquel a liberdade de escolher, em tua casa, e lavar a casa de seu pai aquilo que for mais precioso para ela. Concordas? 

         - Sim, concordo - aquiesceu o marido. 

         Realizou-se o imponente "banquete de separação". Muitos eram os convidados; deliciosos os vinhos e apetitosos os manjares. 

         Já bem tarde o marido disse à esposa: 

         - Vamos, querida. Escolhe logo a joia que mais ambicionas e leva para a casa de teu pai. Não te esqueças do que prometeste ao rabi. 

         - Ainda é cedo - desculpava-se Raquel, afogada num tristeza passiva - Deixa-me goza, durante mais alguns  instantes, da tua companhia e da companhia de teus amigos. 

       Decorrido algum tempo, o marido já estonteado de sono insistia: 

       - Já escolhestes, querida? Leva aquilo que mais te agradar: joias, móveis, alfaias - não importa. Leva (já disse) aquilo que mais te agradar. 

         - Ainda não escolhi, meu amor. 

          Em seus olhos, sempre tão meigos e serenos, percebia-se um misto de ansiedade e de dor. 

          Ao romper da manhã, e ao findar da festa, o marido, vencido pela fadiga, adormeceu pesadamente. 

           Que fez a diligente Raquel? Chamou os servos e disse-lhes com fugitivo rubor no rosto: 

         - Levem meu marido, assim como está, sem despertá-lo, para a casa de meu pai. 

         Quando o marido acordou, inteiramente alheio ao que havia ocorrido, perguntou à esposa: 

        - Onde estou eu? 

         A dedicada Raquel esclareceu com o mesmo sorriso resignado e triste: 

         - Estás em casa de meu pai. 

         E por que vim para aqui? - estranhou ele, esmagado pela violência da surpresa. 

         Feita uma pausa indicativa de embaraço, estabeleceu a bondosa Raquel com a requintada meiguice que resplandecia em seus olhos formosamente azuis: 

         - Aceitaste a condição do Rabi e determinaste que eu escolhesse o que de mais precioso para mim havia em tua casa e trouxesse comigo para o lar de meu pai. Ora, para mim, nada há no mundo de mais precioso do que o meu marido. Foi, pois, a ti, unicamente  ti, que escolhi!

         Sentiu o jovem tocado no mais íntimo da alma pela dedicação e pela doçura de sua esposa. Nesse mesmo dia o casal voltou à presença do rabi. E o marido declarou enternecido, mas numa firmeza inabalável: 

         - É esta a minha esposa, ó Rabi! É esta a companheira ideal de minha vida! Não deixei, um só momento de querê-la, de amá-la muito! Com filhos ou sem filhos - não importa - só a morte nos poderá separar!

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Este delicadíssimo conto, joia romântica da literatura judaica, aparece em Yalkut, página 4. Cfr. R Cansino-Assena "Las belezas del Tamud", pagina 143.  É interessante confrontar a versão que oferecemos com Shir ha-Shurin Rabath, I, 4 apud Lewis Browne - "Asabedoria de Israel", tradução de Marina Guaspari. Ed. Pongetti, 1947, pagina 245. Sobre a questão do divórcio (findo os dez anos de casamento estéril)  convém ler na Torah-Jabanoth, 6,6.  Veja-se a curiosa e delicadíssima versão dada a essa mesma página pelo famoso escritor Lafcadio Hearn em seu livro "Feuilles éparses de literatura étranges", tradução de Marc Logé, 1932, pagina 365. O conto é, por alguns talmudistas, atribuído a um certo Rabi Idi.


A RAPOSA E A VINHA

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        Uma raposa pusera-s a namorar avidamente uma vinha tão bem cercada que não havia brecha por onde entrasse. Deu voltas  mais voltas, até que topou um resquício entre os moirões, da cerca. Lança-se por ele, impetuosamente, mas era tão estreito que mal pode insinuar a cabeça. Esforça-se daqui, tenta dali, mas tudo em vão. Veio-lhe então a ideia um plano singular: "Se eu pudesse, monologava ela, emagrecer bastante passaria por esta brecha". Resolvida a vencer a prova, submeteu-se a um estranho teor de vida: ficou três dias sem provar alimento algum, e pôs-se tão fina e magrinha que mais parecia um palito. Toda ancha com o sucesso, esgueira-se pelo delgado vão e entra radiante, na vinha. Ali pode pagar-se de tudo quanto sofrera e passou alguns dias na mais regalada abundância. 

        Chegado o tempo de sair, receosa dos donos do vinhedo que não podiam tardar, corre à brecha por onde entrara e tenta meter-se por ela. Aconteceu, porém, que a infortunada, naqueles poucos dias de regabofe, engordara tanto que não mais cabia ali. 

        Mais triste do que um mocho, desiste do intento e resolve repetir a provação por que passara, pondo-se, de novo, em rigoroso jejum até que, novamente magra como um esqueleto, lhe foi possível safar-se pelo agulheiro. Estava, porém, tão fraca e debilitada, que parecia um cadáver. 

         Livre daquele cativeiro, olhou melancolicamente para a vinha e disse-lhe: "Adeus, não me apanharás mais. És sedutora e deliciosa. Tens, em abundância, frutos saborosos,mas que importa? De ti saio, como entrei."

      Moral da história: Assim é o homem em relação aos prazeres efêmeros da vida terrena. O homem quando  nasce tem os braços estendidos para a frente, como se dissesse: "Eis o meu mundo. Todo este mundo é meu!" Quando morre traz os braços ao longo do corpo, como a prevenir os que se aferam aos bens matriais: "Nada levo deste mundo, Deixo para a vida o que tudo o que ela me deu!

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NOTA: Essa interessantíssima fábula da raposa é narrada em Midrach, pagina 98, 2. Sob o título "Lavie" podemos admirá-la numa versão um pouco diferente em "Cntes du Talmud", de Léon Berman. página 90. É atribuída a Rabi Gniva, do III Século, conforme Koheleth Rabba, I parte. 

A LENDA DA EMBRIAGUEZ

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   Preparava-se Noé para plantar a primeira vinha e eis que surge diante dele a figura nega e hedionda do demônio.

       - Que pretendes plantar aí?  - perguntou o Demônio.

       - Uma vinha! - informou Noé, encarando com olhar sereno o seu insolente interrogante. 

       - E como são os frutos que esperas colher, meu velho? - inquiriu friamente o Demo. 

       - Ora - explicou o Patriarca de bom humor - são frutos deliciosos, sempre doces. Os homens poderão saboreá-los maduros e frescos ou secos e açucarados. Do caldo desse fruto poderá ser fabricado uma bebida - o vinho - de incomparável sabor. Essa bebida levará alegria e inspiração os corações dos mortais!

       Quero associar-me contigo no plantio dessa vinha! - propôs o Demônio com certo acinte na voz.

        - Muito bem - concordou Noé - Trabalharemos juntos. Ficarás, desde já, encarregado de regar a terra.  

        E o demônio, no desejo de agir pela  maldade, regou a terra com o sangue de quatro animais tirados da Arca: o cordeiro, o leão, o porco e o macaco. 

        Em consequência desse capricho extravagante do Maligno aquele que se entrega ao vício degradante da embriaguez recorda, forçosamente, um dos quatro animais. Bem infelizes os que se deixam dominar pelo álcool! Tornaram-se alguns sonolento e inermes como um cordeiro; mostram-se outros exaltados e brutais como o leão: muitos, sob a ação perturbadora da bebida que os envenena, ficam estúpidos como o porco. E há, finalmente, aqueles que, depois dos primeiros goles, fazem trejeitos, dizem tolices e saracoteiam como macacos. 

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NOTA: Essa lenda é encontrada emR. Tanhuma, 13. Cfr.A. Cohem - "le Talmud", tradução de Jaques Marti; Payot, Paris, 1933.

A CABRA FATIGADA

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    José Krants, o grande "maggid" (evanglista) de Dubno, morto em 1804, granjeara renome com as suas parábolas. Chegando, certa vez, ao cair da tarde à cidade de Jericó apeou-se à porta de abastado mercador. 

       Recebe-o o ricaço com simpatia e disse-lhe sem mais preâmbulos: 

       - A paz seja convosco, ó sábio "maggid"! Sentai-vos e contai-me uma linda parábola ou uma lenda de Israel. 

       - Com o maior prazer - aquiesceu o pregador.

       Encostou-se tranquilo na soleira da porta, meditou durante alguns instantes, passou lentamente a mão pela testa, e narrou o seguinte: 

       - Um mercador galileu levou, certa vez, para casa uma cabra que comprara na feira, e a mulher começou a ordenhá-la. Não obteve, naturalmente, nenhuma gota de leite. - "Ora! - protestou a mulher - foste iludido no negócio, meu marido. Esta cabra não presta. Não dá leite!"

       Enganas-te, querida - retorquiu o galileu - é muito boa cabra, de boa raça e dá muito leite. Mas vem de longe, está cansada, faminta e com sede. Satisfaz-lhe as necessidades, dá-lhe uma noite de descanso e, amanhã, terá leite à farta. 

 Moral da história: quando estamos cansados, famintos e com sede não conseguimos produzir nada de útil. 

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 NOTA: Adaptado de um trecho citado por Lewis Browne em seu livro "Sabedoria de Israel. pagina  509. 

O BRASEIRO DO RIO CEDRON - Por Malba Tahan

      Um judeu rico e impiedoso apostou, de uma feita, em como ninguém seria capaz de passar, na época de inverno, uma noite inteira dentro ...