.
.... e onde quer que tu fores irei eu; onde quer que tu pousares à noite, ali pousarei eu; o teu povo é meu povo, e o teu Deus é o meu Deus.
Retirado de O Livro de Rute I, 16
- Havia em Sidon, em época esquecida nas brumas do passado, uma mulher chamada Raquel. Era boa, paciente e simples. Casou-se muito jovem e viveu dez anos em perfeita harmonia com seu marido. Dez anos esteve casada sem ter o lar alegrado com a presença de um filho.
Ora, o Livro de Moisés, em relação aos casamentos estéreis, não deixa margem para a menor dúvida: - "Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos pode o marido requerer o divórcio." E o divórcio é, portanto, imposto em face da Lei.
O grande ideal de Raquel era ter vários filhos, ou, ao menos um filho. Mas esse filho tão desejado não veio.
Decorridos os dez anos e mais dez dias o marido, bastante constrangido, disse à meiga Raquel:
-Há dez anos, querida, estamos cansados e não recebemos, em nosso lar, até agora, a bênção de um filho. Triste,bem triste será para mim morrer sem deixar, sobre a terra, um herdeiro de meu nome! Que fazer querida?
Raquel não respondeu. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Amava o seu marido e sabia que era amada, muito amada por ele. Com o espírito dilacerado de aflição disse-lhe com sua voz aveludada e branda:
- O caso é simples. Vamos procurar o Rabi Simeão. Ele decretará, hoje mesmo, o nosso divórcio.
Encaminhou-se o casal para a residência do famoso Rabi Simeão Ben Yohai que o povo apelidara "o muito sábio".
A alegação do marido era irretorquível diante da Lei. A boa Raquel sabia e já estava conformada com a sua triste sorte.
Rabi Simeão, sereno e melancólico, depois de ouvir os cônjuges, condicionou:
- A vossa união (lembro-me bem!) foi celebrada com um banquete: exijo que da mesma forma seja celebrada a vossa separação.
E, voltando-se para o marido, acrescentou num tom repousado e firme:
- Imponho, entretanto, u a condição. Terminado o banquete terá Raquel a liberdade de escolher, em tua casa, e lavar a casa de seu pai aquilo que for mais precioso para ela. Concordas?
- Sim, concordo - aquiesceu o marido.
Realizou-se o imponente "banquete de separação". Muitos eram os convidados; deliciosos os vinhos e apetitosos os manjares.
Já bem tarde o marido disse à esposa:
- Vamos, querida. Escolhe logo a joia que mais ambicionas e leva para a casa de teu pai. Não te esqueças do que prometeste ao rabi.
- Ainda é cedo - desculpava-se Raquel, afogada num tristeza passiva - Deixa-me goza, durante mais alguns instantes, da tua companhia e da companhia de teus amigos.
Decorrido algum tempo, o marido já estonteado de sono insistia:
- Já escolhestes, querida? Leva aquilo que mais te agradar: joias, móveis, alfaias - não importa. Leva (já disse) aquilo que mais te agradar.
- Ainda não escolhi, meu amor.
Em seus olhos, sempre tão meigos e serenos, percebia-se um misto de ansiedade e de dor.
Ao romper da manhã, e ao findar da festa, o marido, vencido pela fadiga, adormeceu pesadamente.
Que fez a diligente Raquel? Chamou os servos e disse-lhes com fugitivo rubor no rosto:
- Levem meu marido, assim como está, sem despertá-lo, para a casa de meu pai.
Quando o marido acordou, inteiramente alheio ao que havia ocorrido, perguntou à esposa:
- Onde estou eu?
A dedicada Raquel esclareceu com o mesmo sorriso resignado e triste:
- Estás em casa de meu pai.
E por que vim para aqui? - estranhou ele, esmagado pela violência da surpresa.
Feita uma pausa indicativa de embaraço, estabeleceu a bondosa Raquel com a requintada meiguice que resplandecia em seus olhos formosamente azuis:
- Aceitaste a condição do Rabi e determinaste que eu escolhesse o que de mais precioso para mim havia em tua casa e trouxesse comigo para o lar de meu pai. Ora, para mim, nada há no mundo de mais precioso do que o meu marido. Foi, pois, a ti, unicamente ti, que escolhi!
Sentiu o jovem tocado no mais íntimo da alma pela dedicação e pela doçura de sua esposa. Nesse mesmo dia o casal voltou à presença do rabi. E o marido declarou enternecido, mas numa firmeza inabalável:
- É esta a minha esposa, ó Rabi! É esta a companheira ideal de minha vida! Não deixei, um só momento de querê-la, de amá-la muito! Com filhos ou sem filhos - não importa - só a morte nos poderá separar!
.
Este delicadíssimo conto, joia romântica da literatura judaica, aparece em Yalkut, página 4. Cfr. R Cansino-Assena "Las belezas del Tamud", pagina 143. É interessante confrontar a versão que oferecemos com Shir ha-Shurin Rabath, I, 4 apud Lewis Browne - "Asabedoria de Israel", tradução de Marina Guaspari. Ed. Pongetti, 1947, pagina 245. Sobre a questão do divórcio (findo os dez anos de casamento estéril) convém ler na Torah-Jabanoth, 6,6. Veja-se a curiosa e delicadíssima versão dada a essa mesma página pelo famoso escritor Lafcadio Hearn em seu livro "Feuilles éparses de literatura étranges", tradução de Marc Logé, 1932, pagina 365. O conto é, por alguns talmudistas, atribuído a um certo Rabi Idi.