domingo, 9 de abril de 2023

O BRASEIRO DO RIO CEDRON - Por Malba Tahan



      Um judeu rico e impiedoso apostou, de uma feita, em como ninguém seria capaz de passar, na época de inverno, uma noite inteira dentro do ribeiro de Cedron 

       O Cedron, tantas vezes citado no Livro Santo, não passa de um filete líquido que se esgueira pela Terra Santa a poucas milhas do Templo, triplicando, porém, o volume de suas águas durante as longas e copiosas chuvas hibernais. 

       Nesse período, a temperatura das águas baixa a tal ponto,  que seria suplício insuportável uma imersão demorada em seu lençol. 

         Propalado o singular desafio, logo se apresentou um jovem, de origem humilde, que se dispunha  a realizar a audaciosa façanha, para fazer jus ao premio prometido. 

        A mãe do rapaz, entretanto,  opunha-se ao ariscado objetivo apontando ao filho temerário os inconvenientes do perigoso banho onde ele poderia encontrar a morte, ou, pelo menos, uma grave enfermidade. A nada quis atender o tresloucado, que, às prudências maternais, contrapôs o argumento de que seria o meio único de  miséria, pois a paga oferecida pelo rico apostador iria constituir um pequeno pecúlio à sua alquebrada velhice.  

          Aceitas, afinal, a condições da aposta, encaminharam-se o milionário judeu, o destemido rapaz e a desolada mãe, seguidos das testemunhas, para as margens do Celeron. 

         E logo que o Sol entrou a descambar no horizonte,assinalando o início de novo dia judaico, o moço entrou no rio, suportando  ação frigidíssima da água, em presença da multidão que se aninhavam curiosa. Alguns populares, ansiosos por que o orgulhoso ricaço perdesse a aposta, estimulavam o moço a manter o ânimo avante:  

         - Muito bem! Coragem rapaz! O frio não atemoriza os valentes!

         Outros, porém, lamentavam, de antemão, o fim trágico  daquela temeridade: 

         - Não estará com vida aos despontar o Sol! 

         Como andar da noite, retirou-se o ricaço com grande parte da assistência, a quem o espetáculo se tornava monótono, permanecendo, apenas, as testemunhas da aposta, protegidas   por bons agasalhos e a mãe do jovem que, da margem do rio, de quando em vez, quebrava  o silêncio com sua voz débil e chorosa, a chamar, em aflitivo desespero, pelo filho dedicado que, metido na água até o pescoço,lutava contra o frio impiedoso que lhe gelava os membros. 

            As horas se alongavam para a infeliz e para o destemido moço numa trágica e torturante lentidão. E alta noite a temperatura baixava tanto que a mísera anciã, sem o  menor abrigo, não dispondo de xale ou simples manta, se lembrou que poderia aquecer-se a uma fogueira. E apanhando aqui e ali alguns gravetos e dois punhados de folhas secas, acendeu um pequeno braseiro; só assim pôde, aconchegada ao tímido calor, resistir ao vento gélido e cortante que varria, desoladamente, os campos da Judeia. 

           A rubra luz do Sol, erguendo-se no horizonte, pôs termo. enfim, à dolorosa aposta. Foi o rapaz retirado de dentro do rio por alguns amigos, já regelado, semimorto, e do estranho desafio proclamado vencedor.  

             Juntamente com as testemunhas dirigiram-se todos à casa do rico israelita,autor da aposta, a quem tudo narraram.  Um dos presentes exaltou a extraordinária dedicação materna: 

           O Frio era tão intenso, senhor, que a pobre velha, para não abandonar o filho viu-se forçada a acender um braseiro.  

             - Como? - estranhou o milionário - a mãe do rapaz acendeu uma fogueira? 

             - Fiz, sim, com umas poucas brasas -confirmou a boa velhinha.  

             - Nesse caso - retorquiu o pérfido ricaço, em tom enfático - não pago coisa alguma. Foi um ardil de que ela lançou mão para aquecer o filho e abrigá-lo, também, do frio. Está, portanto, nula a aposta. 

           A escusa cínica do judeu, o desprezível motivo que alegava, não tinham nenhum cabimento. Como poderia um pequeno braseiro à margem do Cedron aquecer quem estava mergulhado nas frias águas do rio?

          O rapaz não se conformou com a recusa, e a conselho de  amigos, recorreu ao juiz d cidade.

          O digno re respeitável magistrado, depois de ciente do caso pelas inúmeras testemunhas; depois de ouvir as razões alegadas pelos litigantes, reconheceu, por sentença, contra a opinião unânime do povo, que o direito estava do lado do rico e a aposta não devi a ser paga.  

            Filho e mãe, desapontados com o julgamento não hesitaram em recorrer ao Tribunal Superior denominado "Câmara dos três juízes". Atendendo o argumento do réu milionário o Tribunal conformou a sentença proclamando que o braseiro à margem do Cedron aquecia as águas impiedosas do rio. Essa iniquidade não desanimou os dois infelizes e a questão foi levada à "Corte de Apelação", tribunal de alto prestígio, onde mais de tinta juízes, depois de longos e eloquentes arrazoados julgaram boa e decisão anterior. Restava,agora, como último recurso, o Tribunal dos Setenta ancião, ao qual os interessados levaram a demanda que devia ser discutida e julgada em presença do rei Davi e do príncipe Salomão.  

             Salomão era nesse tempo muito jovem e iniciava a sua carreira; dotado, porém, de inteligência agudíssima, compreendeu logo pelos comentários que eram feitos que os Setenta Anciãos estavam inclinados a favor do rico, e que mais uma vez a iniquidade da sentença inicial seria confirmada. 

           A ameaça daquela clamorosa injustiça revoltou o jovem príncipe.  

           Antes, pois, de ser iniciado o julgamento do célebre pleito, Salomão convidou o rei Davi, seu pai, e os venerandos juízes do alto Tribunal para um grande banquete.

           Aquele convite do príncipe foi recebido com visível demonstração de alegria. 

           - Agradecemos o banquete - diziam alegremente os juízes - São sempre apetitosos os manjares da corte do rei Davi! 

           Aconteceu, porém, que o banquete, oferecido por Salomão, começou a demorar. 

           Em dado momento o rei Davi, já impaciente, reclamou: 

           - Mas, afinal, quando pretendes anunciar esse banquete? 

           - Senhor - desculpou-se Salomão - a comida ainda não está pronta. É  bem possível que dentro de alguns momentos possamos saborear o banquete.

           Passaram-se, porém, mais duas horas. Os juízes famintos murmuravam irritados com a demora. O rei Davi, protestou com energia: 

             - Que fazem os servos que não preparam logo os manjares? 

             - Rei Davi - explicou Salomão com voz sombria e arrastada - Acabo de ser informado, pelos nossos auxiliares, de que na cozinha de vosso palácio está ocorrendo um caso altamente misterioso que não consigo decifrar. O fogo, por mais forte que seja, não é suficiente para aquecer a comida!

            - Como assim - estranhou o rei Davi num vozeirão soturno - Que fogo é esse que não aquece comida? 

               - Convido-vos, ó rei - sugeriu logo Salomão com alvoroço, convido-vos, juntamente com os vossos esclarecidos juízes, a admirara estranha ocorrência. 

              O rei Davi e os setenta juízes, levados por Salomão, foram até as cozinhas do palácio.  Ali chegados, viram, com assombro, sobre uma larga prancha, os manjares do banquete, inteiramente crus dentro das panelas ou enchendo os grandes caldeirões; à pequena distância vários fogões e fogareiros, bem acesos, lançavam inutilmente  as suas labaredas para o ar. 

               - Que loucura! - protestou, num tom meio jocoso, o rei  Davi - Como pretendes aquecera comida se o fogos  está aqui, de um lado, e as panelas estão a três passos, do outro lado! Isso é um disparate!

              - Em terras de Israel - ponderou gravemente Salomão - deve ser tida como muito acertada a disposição que se observa aqui. A nossa sábia justiça proclamou, em várias sentenças , reconhecidas como justas pelos mais íntegros doutores, que um insignificante braseiro, nas margens do Cedron, é suficiente para aquecer a um homem imerso na água gelada desse rio. Ora é evidente que as chamas destes enormes jogões e fogareiros deverão forçosamente aquecer as panelas que estão a dois passos deles. 

               O rei Davi e os setenta anciãos reconheceram a fina alegoria  do inteligente príncipe. E, nesse mesmo dia, reformaram a sentença injusta e declararam que o rico apostador era obrigado a pagar ao jovem o prêmio fixado, acrescido de uma pesada multa. 

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NOTA: Cfr. Nicolau Rodrigues. Ob. cit., pagina 280. L. Randon "Sagessede Salomon" (Apocryphes de I'Ancien Testament". São igualmente dígnos de atenção os dois contos: "Salomon et grillon" e "Salomon et  Asmodée", citados por A. Weil em seu livro "Contos et légendes d'Isrel", Lib. Nathan, 1928, pagina 53 e ss.

 

 

O CÃO MORTO - Por Malba Tahan

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     Uma fábula oriental descreve um ajuntamento de ociosos em pequeno mercado nos arredores de Jerusalém,  em torno de um cão morto que ainda mostrava,  amarrada no pescoço, a corda com que o haviam arrastado pelo chão. Os que o cercavam, olhavam-no com repugnância. 

      - Empesta o ar - disse um, apertando o nariz com os dedos e enjeitando uma careta de nauseado. 

       - Reparem na sua pele rasgada quem nem para correias de sandálias serve - galhofava outro. 

        - Um egípcio corpulento aludiu às orelhas sujas e sangrentas do animal, e rematou com voz empastada: 

         - Foi, sem dúvida, enforcado por ladrão.

         Desse grupo de homens aproximou-se um desconhecido que ouvir os diversos comentários. Em seu rosto resplandecia estranha luz e todo o seu porte indicava dignidade fora do comum. Pondo os olhos meigos no animal morto e vilipendiado, disse em seu belo e límpido arameu:

          - As pérolas desmerecem diante da alvura dos seus dentes.  

          Todos os circunstantes voltaram-se para ele com assombro, e, vendo-o tão sereno e compadecido, indagavam, entre-dentes, uns aos outros, que poderia ser aquele homem. E  retiraram-se cabisbaixos, envergonhados, quando alguém alvitrou: "Deve ser Jesus, o rabi de Nazaré, que só Ele sabe encontrar qualquer coisa digna de piedade e aprovação, até mesmo num cão morto!"

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NOTA: Cfr. Malba Tahan - "lendas do Céu e da Terra", 9ª eição, página 180. Convém reler a nta que se encontr na pagina 129, na qual se justiifica a inclusão, nesta Antologia, dos ensinamentos de Jesus.  

sábado, 8 de abril de 2023

O ANEL VALIOSO - Por Malba Tahan

 


       Procurado, certa vez, por um mendigo verificou o Rabi Schmelke  que não dispunha de dinheiro algum para dar esmola. Esquadrinhando as gavetas da esposa, encontrou no fundo da caixa de costuras um anel e deu-o ao pobre. Ao regressar à casa, a mulher viu a gaveta aberta, a caixa revolvida e dando pela falta do anel desatou a gritar. O marido explicou-lhe o que ocorrera, e ela intimou-o a correr no encalço do mendigo, e retomar quanto antes o anel que fora dado. Tratava-se de uma joia que valia cinquenta táleres. Que absurdo! Entregar a um mendicante desconhecido uma peça tão preciosa, uma joia de família. 

        O "zaddik" ao ouvir aquilo, saiu de arremesso, correndo pela rua afora, e alcançando o mendigo, advertiu-o ofegante: 

           - Acabo de saber que o anel que de mim há pouco recebeste vale cinquenta táleres. Não consintas, portanto, que te deem por ele quantia abaixo de seu verdadeiro valor. 

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NOTA: Este singular episódio é citado por Elien J. Fimbert no artigo "Recits hassidiques" do livro "Aspets du Génie d'Israel" Paris, 1950, pagina 83. Veja também: "Doutrina e Histórias hassídicas", em Lewis Browne, ob. cit. página 494.  

LADRÃO QUE ROUBA LADRÃO - Por Malba Tahan

 


        O doutor Humá era rico, tinha-se em conta de muito piedoso, porém, em período relativamente curto, sofreu inúmeras perdas e graves desgostos. 

         Um dia, conversando com os colegas, tomou por tema  da palestra as suas próprias desgraças. Arrebatados pelo ardor dos comentários procuram os circunstantes esclarecer a dúvida: - É admissível que as desventuras terrenas seja consequência de algum pecado cometido por quem sobre? Opinaram alguns que como não existe homem isento de culpa, as dores terrenas são sempre consequências dessa culpa.

         O doutor Humá, um pouco ressentido por esta conclusão que parecia uma ofensa ao seu caráter, e um tanto despeitado, objetou: 

         - Acreditais, então, que eu seja réu de alguma falta grave? 

         Um dos colegas replicou: 

         - E tu ousas imaginar que o Senhor castiga um mortal sem causa? 

         - Mas - tornou o doutor mordido por uma preocupação - se me credes culpado em qualquer coisa dizei-o siceramente, e eu procurarei corrigir-me. 

          - A julgar pelo que sabemos de ti - declarou um dos presentes - és justo em todos os teus atos. De uma só falta, de uma só, temos ouvido falar. Ocorre por ocasião da vindima. Não dás ao teu criado a parte da vinha que a caridade impõe.  

           - Que não lhe dou sua parte? protestou risonho o doutor - Mas não credes vós outros que o tal criado me furta muito mais do que deveria eu dar-lhe? 

         - É pela suspeita de que teu criado te furta, furtas  ao criado? Diz o provérbio: "Quem rouba ao ladrão faz-se também ladrão".

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NOTA: Esse episódio é tirado do Talmud Berachot, pagina 5. Estabelece o livro da Leique se dê aos criados uma parte dos diversos produtos do campo.




A MÁ ESPOSA E O CEGO - Por malba tahan

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      Conta-se que o judicioso Rabi, e Galileu, tinha uma esposa má e obstinada que lhe amargurava a vida. A  terrível mulher fazia-o sofrer toda a sorte de contrariedades, escândalos e humilhações; interrompia-o em seus estudos, insultava-os diante de seus próprios discípulos. Estes não se conformavam com aquelas cenas escandalosas e atribuíam a culpa ao doutor que, como marido fim àqueles vexames. Um dia, finalmente, manifestaram todos,com franqueza sua indignação e ardentemente exortaram o mestre a repudiar aquela péssima e indigna companheira.

      O bom marido procurava atenuar a culpa da esposa, escusá-la de todas as grosserias e ocultar-lhes os defeitos. Infelizmente a mulher contribuíra com valioso dote para o lar, ao passo que o doutor não possuía senão pequenos bens de fortuna. 

         Os discípulos, não querendo sofrer, por mais tempo, aquela situação de constrangimento, e movidos de compaixão pelo mestre, reuniram entre si a soma que correspondia ao dote, e induziram o rabi a indenizar a rancorosa mulher e requerer o divórcio. 

         A perversa de posse do dinheiro abandonou, sem o menor pesar, o pobre doutor; algum tempo depois enamorou-se do governador da cidade, com o qual se casou, passando muitos meses numa vida divertida e ruidosa.   

          Mas o bem dura pouco; o governador, que era um homem opulento e prestigioso, caiu na antipatia do príncipe,  foi despojado de todas as riquezas, ficou reduzido à extrema miséria, e, para cúmulo da desgraça, feriu-o súbita e irremediável cegueira. 

          Não tendo meio algum de vida, marido e mulher tiveram de recorrer à caridade  pública. Todos os dias a infeliz levava o marido cego pelas ruas, e da piedade dos transeuntes recolhia as migalhas com que se mantinha. 

           O cego, que conhecia muito bem a cidade, notou que a mulher não o levava nunca a uma certa praça que era muito concorrida. Não a censurou, mas pediu-lhe que o conduzisse até lá, porque os israelitas que moravam na tal praça seriam certamente muito pródigos nas esmolas. 

          - Esmolar entre os hebreus? retorquiu a mulher num gesto de revolta - Mas não sabes que era israelita o meu primeiro marido? Não, eu não me exporei nunca a essa humilhação. 

           O cego insistiu ainda, porém a mulher declarou que nunca concordaria em aquilo. 

          Num dos seus costumeiros passeios, o cego percebeu casualmente que se encontravam próximos da tal praça. Alterando, então, a voz e ameaçando, exigiu que a mulher o conduzisse ali. A mulher resiste; o cego pragueja e iracundo arroja-se sobre ela, segura-a pelos cabelos e começa a espancá-la com fúria. 

           Aos gritos da infeliz acodem várias pessoas, entre as quais Rabi José, o seu primeiro marido. Este, reconhecendo a sua ex-esposa, sente o ânimo agitado por penosa recordação. Procura acalmar o cego, consola a desditosa criatura, dá aos dois uma habitação de sua propriedade e,desde então, toma a seu cargo a manutenção do pobre casal. 


NOTA: Cfr, R. Cansino-Assens. ob.cit., página 110. O Rabi José, o Galileu, viveu no II Século e tornou-se, entre os tanaístas mais sábis, famoso porsua bondade. Cfr. Edmund Fleg., ob. cit., I volume, página 217.

 


UM PRATO DE ENTILHAS - Por Malba tahan

 


            Certa vez estava Jacó a guisar um prato de lentilhas,quando apareceu Esaú que regressava de fatigante caçada. 

          - Dá-me - implorou Esaú - um pouco dessa comida, que estou a cair de fome.

          - Pois não - concordou Jacó - mas, em troca, terás que ceder-me o direito de primogenitura. Serve-te a troca?   

          - Estou a morrer de fome - refletiu Esaú - de que me serve a primogenitura? E esse guisado parece excelente e apetitoso.   

          E, sem mais hesitar, aceitou a proposta do irmão e respndeu:

          - Prometo concordar com a troca.

          - Exijo que essa promessa seja feita  sob juramento, condicionou Jacó. 

           Feito o juramento, Esaú devorou o guisado  sem imaginar que havia cedido, por um uma insignificância, um dos seus mais preciosos direitos.

           Muitos homens há, na vida, que à semelhança de Esaú sacrificam o futuro e arruínam a vida trocando bens valiosos pelo prazer momentâneo de um prato de lentilha! 

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NOTA: O episódio da Cessão da primogenitura é encontrado no Gênesis, XXV, 29 e ss.

 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

HUMILDADE - Por Mlba Tahan

 


       Um fabricante de sandálias, num momento de exaltação, feriu com grave ofensa o Rabi Johanan.  Um dos discípulos procurou o sábio no mesmo dia e,muito solícito, disse-lhe:

           - Mestre , permiti que eu castigue aquele homem deseducado e estúpido que vos injuriou?  

           - Não é digno de respeito - corrigiu com sereno semblante o sábio - aquele que concede a outrem permissão para proceder mal.  

            E logo justificou dogmático e conciliador: 

            - Quem não domina o seu gênio carece de inteligência.  

            Quem é poderoso? O que responde a insânia com humildade e sabe reprimir os impulsos condenáveis. Quem não domina os seus furores muito menos saberá corrigir a cólera alheia.  A origem do êxito do humilde é que os seus semelhantes o ajudam, graças à sua submissão. Mais amparo encontra o homem na sua própria humildade do que a força  dos poderosos.

 

NOTA:  Distingue-se os rabinos pelo espírito de humildade que revelavam. O perdão das ofensas alheias figura entre os preceitos talmúdicos, Yoma 23.a.; Chabbat, 151, b. São inúmeros os exemplos colhidos a tal respeito na imensa literatura religiosa de Israel. 

O BOM SAMARITANO por Malba Tahan

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     Um doutor da lei apresentou-se,certa vez, diante de Jesus e interrogou-o: 

      - Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna? 

      Jesus ergueu o rosto, fitou-o  com bondade e perguntou:

       - O que está escrito a lei? Que encontras a tal respeito entre as suas prescrições?  

       O doutor israelita apressou-se em responder: 

       - "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo teu coração, de toda tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças e teu próximo como a ti mesmo."

       Tornou Jesus, serenamente: 

        - Respondeste muito bem: fazei assim e viverás.

        O doutor da lei, depois de meditar um instante,novamente interpelou o Mestre: 

        - Dizei-me, ó Rabi, a quem devemos considerar como o próximo? 

         Para atender a essa nova pergunta, Jesus narrou o seguinte: 

         -  Descia um judeu de Jerusalém para Jericó, pelas gargantas tortuosas das montanhas. Os ladrões assaltaram-no, e tendo-o agredido e roubado, deixaram-no mal ferido na estrada. Passa um sacerdote, um daqueles que tem o primeiro lugar nas festas e assembleias e se blasonam (se vangloriam) de saber na ponta dos dedos todos os ditames da vontade de Deus; vê o infeliz caído, e não interrompe a sua marcha e para evitar contatos imundos, segue apertando o passo pela margem da estrada. Eis, logo depois, surge um levita. Também este, afamado pelo seu zelo, conhecendo, por miúdo, toda as cerimônias sagradas, julgava-se, antes, um dos senhores do Templo,que mero sacristão. Olha de esguelha o corpo sangrento, ouve os gemidos de dor e prossegue impassível em sua jornada. Passa, finalmente, um Samaritano. Não perdeu o Samaritano tempo em verificar se o infeliz, estendido nos pedregulhos da estrada, era da Samaria (cidade de Israel) ou se nascera na tribo de Judá. Aproxima-se e, vendo-o assim abandonado, quase a morrer, enche-se de compaixão por ele.  Vai buscar seus frascos na montaria; derrama sobre a ferida do infeliz um pouco de óleo, algumas gotas de vinho, ata-o o melhor que pode, com pano e com esforço e cautela acomoda o desconhecido no dorso de sua mula: leva-o com amenidade  e cordura (prudência)  para a hospedaria mais próxima; mete-o num leito, restaura-lhe as forças com alguns alimentos quentes e só o deixa quando o vê falando e comendo. No dia seguinte paga dois dinheiros ao hospedeiro, dizendo-lhe com o maior interesse: "Cuida dele, meu amigo, vela por ele o melhor que puderes; o que gastares  mais pagar-te-ei na volta. 

            Neste ponto fez Jesus uma pausa e, dirigindo-se ao doutor israelita, perguntou: 

            - Qual dos três se mostrou, a teu ver, o próximo do desventurado que caíra nas mãos dos salteadores? 

             Respondeu o doutor da lei num ímpeto irreprimível: 

             - O que se apiedou dele! O samaritano que o socorreu!

             Rematou Jesus com um sorriso de bondade: 

            - Assim o disseste. Vai e imita-o!


NOTA: Poderia parecer estranho que este famoso episódio do Novo Testamento viesse a figurar entre as lendas e tradições israelitas. Convém não esquecer, porém, de que Jesus  era Judeu  e que o cristianismo, embora espiritualmente, está vinculado a Israel. Não seria, portanto,aceitável uma Antologia judaica que silenciasse sobre a obra de Jesus e de seus discípulos que são figuras notáveis na vida cultural israelita.


 

terça-feira, 4 de abril de 2023

NADA TENS A PEDIR

 

  

Esta é uma das muitas lendas Israelitas inspiradas na vida exemplar e misteriosa do milagroso Baal Schem. Aqui é apresentada  segundo a narrativa feita pela jovem professora I.V., figura de prestígio no magistério e reconhecida autoridade em assuntos relacionados com as tradições judias.

    O justo florescerá como uma palmeira, como o cedro do Líbano crescerá.

 

       Vindo no sentido contrário ao nosso, aproximou-se um ancião que se arrastava penosamente, apoiado em um grosseiro bastão.Menos pelos trajes que lhe cobriam o corpo do que pela fisionomia triste, abatida, podia o observador vulgar perceber que o pobre velho trazia sobre os ombros o peso de uma vida cheia de sofrimentos e desenganos. 

        Sensível à angústia alheia levei, quase maquinalmente, a mão à algibeira onde, pela graça de Deus, sempre encontrei uma moeda co que socorrer o infortúnio que esmola nas vias públicas. O jovem Davi Cohn, que vinha a meu lado, ao dar tento no meu gesto tocou-me de leve no braço e disse-me em voz baixa: 

          - Não, meu caro "góim"! Não penses em dar o teu generoso óbolo a esse mal-aventurado ancião! 

             A surpresa que me causou aquela estranha advertência não passou despercebida ao meu companheiro.  Que motivo teria ele, afinal, para, evitar que eu socorresse, o trôpego e senil mendigo! Estaríamos, acaso, diante de um  desses charlatões que se disfarçam com sórdidos andrajosos para explorar a caridade pública?

           E, no momento em que eu pretendia interrogá-lo sobre o caso, Davi Cohn tirou respeitosamente o chapéu e  dirigiu-se  em yiddish, o esfarrapado desconhecido, uma saudação solene como se tivesse diante de si o grão-rabino ou um dos doutores da Sinagoga. 

             Pelas barbas de todos os profetas! Aquele pobre diabo que creditava ser um mísero pedinte era, por certo, um dos judeus mais ilustres da cidade... 

           E, entretanto que o velho se afastava no seu andar pesado e claudicante, punha-me eu a meditar naquele mistério que circundava a fantástica existência. Vivia na penúria e não podia valer-se da caridade alheia! 

          Adivinho e justifico  a tua curiosidade - disse-me, por fim, o meu companheiro. - Queres com certeza, saber quem é esse pobre velho que eu acabo de saudar com tanto acatamento.  Vou contar-te o que ouvi há três anos, de um sábio talmudista: 

*    *    *

            Dois meninos Samuel e Nathan, quando ainda frequentavam os bancos escolares, ligados pelos laços da mais terna amizade, fizeram um pacto solene: aquele que se achasse, algum dia, em situação próspera seria obrigado a auxiliar o outro.

          Unidos, assim, por esse mútuo juramento atiraram-se na luta incerta pela vida.

          Amontoaram-se os dias; sucederam-se os meses; correram os anos. 

        Nathan, beneficiado por uma herança, estabeleceu-se  no comércio e, bafejado por bons ventos, enriqueceu. Samuel, entretanto, não foi feliz. Tentou vários meios de vida, mas sem resultado. Os contratempos da má sorte pareciam não quererem afastar-se da soleira da sua casa. 

         Ocorreu a Samuel a aliança feita sob a égide do teto colegial, vindo-lhe a lembrança de pedir o auxílio do antigo condicípulo que era, então, um dos mais fortes comerciantes da cidade.

          Com decepcionante espanto ouviu de Nathan a mais formal e impiedosa recusa.

          - Não me lembro de ter feito pacto algum contigo, e teria sido leviandade, se não estultícia, assumir tão estúpido compromisso o que o mais rudimentar bom senso repele e anula. Certo estou de que essa invencionice não passa de um plano mal alinhavado com que pretendias extorquir de  mim algum dinheiro. Nesse ponto, porém, estás completamente iludido, e não levas nem meio "copeque".

          O procedimento desleal e egoísta de Nathan abalou profundamente o espírito de Samuel. Jamais poderia ele imaginar que seu amigo se houvesse daquele modo indigno e revoltante, negando, com tamanho cinismo, um ajuste feito sob a invocação do Eterno e transformando tão ingênuo movimento de seu coração num propósito que só ditam caracteres denegridos pela baixeza e pela desonra. 

*     *     *

          O destino encerra, porém, as sábias lições que Deus procura transmitir aos homens. 

          Com o andar dos meses modificou-se por completo a situação econômica dos dois amigos. 

          Auxiliado por um sócio inteligente e dedicado, Samuel conseguiu realizar grandes negócios e ganhar muito dinheiro. Nathan, em consequência, de um naufrágio, ficou de um momento para outro atirado à mais completa miséria e crivado de dívidas. Lembrou-se, nessa conjuntura, do pacto firmado entre ele e Samuel e resolveu apelar para o amigo. 

          Recebeu-o com simpatia o bom Samuel e disse logo: 

          - Não poderia jamais esquecer, amigo Nathan, o pacto que fizemos, sob tão feliz inspiração. Asseguro-te que empregarei os maiores esforços e não medirei sacrifícios para auxiliar-te. 

        E o generoso Samuel convidou Nathan a vir com a família hospedar-se em sua casa durante aquele período de crise. 

         Certo dia, com aceso interesse, Nathan procurou Samuel: 

         - Caro amigo, surgiu uma grande oportunidade e quero valer-me dela. Preciso de oitenta rublos pata uma transação urgente. Podes emprestar-me essa quantia? 

         - Com o maior prazer - aquietou Samuel, com afável serenidade. 

         E Nathan prontamente obteve do prestimoso amigo o dinheiro de que precisava. 

*    *    *

          Dez anos depois o quadro da vida de ambos sofria nova e radical transformação. 

          Impelido por uma aragem de sorte torna-se Natahan um dos mais ricos banqueiros da Polônia, e, Samuel, tendo fracassado em várias empresas, achava-se novamente  braços com a mais negra miséria. 

            E o pobre Samuel pensou: 

            - Desta vez Nathan não deixará de auxiliar-me pois já teve ocasião de valer-se do pacto que existe entre nós. 

           Depois de várias tentativas malogradas, conseguiu, afinal, chegar à presença do próspero banqueiro. 

            Ao ouvir falar no pacto, Nathan, amordaçando segunda vez a consciência, atirou à car do amigo estrepitosa e humilhante gargalhada: 

           Já não é nova essa léria (conversa astuciosa) meu velho. Voltas a esse plano idiota de obter dinheiro. Pacto! Pacto! Forte asneira! Como poderia eu comprometer o meu futuro com um pacto dessa natureza? Julgas-me, então, algum imbecil disposto a emprestar dinheiro a negociantes falidos e arruinados? 

             Samuel, ao perceber que Nathan fazia-se de esquecido, cortou-lhe o aranzel dizendo-lhe, num desabafo: 

            - Já que a tua memória é fraca e mais fraca a tua dignidade para conservares os compromissos e as dívidas de honra, vê se te lembras, ao menos, de que me deves a quantia de oitenta rubros que de minhas mãos recebeste, a título de empréstimo, quando vivias, a minha custa, com tua família, em minha casa. 

          - Estás delirando, Samuel - atalhou Nathan com um sorriso amarelo nos lábios, sacudindo os ombros enfadado. 

          - Quem poderá crer que um banqueiro milionário haja recebido dinheiro de um pobre diabo como tu!É de assombrar a pieguice da ideias! Peço-te que não me apareças mais, pois não disponho de tempo a perder com conversa fiada. 

*    *    *

           Tão abalado ficou Samuel com a infame conduta de Nathan que adoeceu gravemente e, ao cabo de poucos dias,a morte vinha buscá-lo com se o quisesse livrar dos grandes desgosotos e amarguras que lhe acabrunhavam a existência. 

          A alma de Samuel - reza a lenda - levada para o Céu, foi ter à presença do profeta Elias. 

         - Samuel! - proferiu o profeta - foste sempre na vida um homem justo e bom. Cabe-te, pois, pela vontade do Eterno, uma recompensa no Céu. Pode formular, se quiseres o pedido de algum bem a ser realizado no mundo, entre os teus amigos e parentes. Fala Samuel, e o Eterno ouvirá a tua voz. 

         Surpreendido por aquelas palavras, respondeu Samuel numa inflexão alta e resoluta:

         - Senhor, eu nada fiz para merecer tão grande recompensa da misericórdia do Santo. Julgo, entretanto, que me ocorre o dever de aproveitar a oportunidade que me ofereceis, para salva um amigo que deixei na Terra. Esse amigo chama-se Nathan. Foi mau e ingrato para comigo e estará, com certeza, condenado ao eterno castigo nos abismos do Inferno. Desejo, pois, voltar ao mundo sob forma de mendigo, para reaver de Nathan uma quantia que me é devida. Quero receber a dívida "copeque" por "copeque". Certo estou de que Nathan, em se lhe oferecendo ensejo, se desobrigará de um compromisso sagrado, penitenciando-se para assim poder alcançar a eterna salvação!

         Retorquiu o profeta Elias com precipitada vivacidade: 

          - Se é para cobrar uma dívida de honra é inútil a tua volta ao mundo. Farei com que teu filho mais velho, que vive modestamente, fique reduzido à miséria e vá esmolar, todos os dias, à porta da casa de Nathan. 

          - Senhor - discordou Samuel - estou apercebido de valor para sofrer todas as angustias, mas não tenho coragem suficiente para ver aflito um filho amado! Deixa-me, senhor, voltar ao mundo para salvar o amigo!

           E Samuel, atendido  em seu desejo, tornou à paragem dos mortais no corpo de um mendigo. 

*    *    *

          Um dia achava-se Nathan absorvido em seus múltiplos negócios bancários quando ouviu intensa bulha no corredor que conduzia à escada principal. 

           Chamou um dos empregados e interrogou-o sobre o que se passava. 

          - É um pobre que veio pedir esmola - explicou o interpelado. - Queremos dar-lhe dois "copeques" mas ele não os aceitou. Diz que não se retira da porta do banco enquanto não receber uma esmola das mãos do  próprio chefe Nathan.  

          - Pelo que vejo - considerou o banqueiro - temos hoje, como novidade, um mendigo, ousado e caprichoso. Cada doido com sua mania! Se Samuel já não tivesse morrido há tanto tempo, eu juraria que era ele que vinha importunar-me outra vez com o tal pacto. 

           E, depois de meditar um instante, ordenou  um de seus auxiliares: 

           - Manda vir imediatamente o tal mendigo até aqui.

           Momentos depois o mísero pedinte foi levado à presença do milionário. 

          - Que desejas de mim, meu velho? - perguntou Nathan emprestando à voz metálica um tom maldoso de ironia e sarcasmo.

           - Quero apenas, senhor, receber de vossas mãos a esmola de um "copeque" e virei aqui, se permitires, todos os dias!

          - Esta é de se lhe tirar o chapéu! Não faltava mais nada! Julgas, então, miserável, que eu disponho de tempo suficiente para atender a tipos da tua espécie? Pensas, por ventura, que eu vou interromper os meus negócios e lucubrações (meditação) para dar esmolas aos sujos que aqui vem mendigar? 

           E ajuntou irado, aflautando a voz: 

           - Quereis receber uma esmola de minhas mãos? Pois, bem. Vais recebê-la, não das minhas mãos, mas de meus pés!

          E, puxando o velho pela gola do esfarrapado gibão, degraus abaixo imprimindo-lhe violento pontapé.

           O mendigo gravemente ferido em consequência da queda, poucos dias depois falecia.

*    *    *

           Algum tempo havia decorrido quando chegou ao  conhecimento de Nathan que se achava na cidade o famoso rabi Baal Schem que realizava surpreendentes milagres e lia o destino dos homens. 

          Nathan, interessado em conhecer o sábio rabi, foi procurá-lo. 

          No momento em que o banqueiro chegou, proferia o santo a prece que se denomina "shimeshi". Essa prece, como é notório, não pode ser interrompida, razão porque o poderoso Nathan foi obrigado a esperar que Baal Schem chegasse ao fim do capítulo. 

          Que desejas de mim, meu filho? - inquiriu bondoso o rabi - Que tens a pedir? 

          Nathan, orgulhoso e descrente, emendou com arrogância:  

          - Senhor, eu nada tenho a pedir. Sou rico, poderoso e sinto-me bem na vida. Todos os meus desejos estão satisfeitos. Aqui vim unicamente para conhecer-vos e trazer alguns rublos para os vossos pobres.

          - Se assim é, meu filho - condescendeu o rabi, em tom displicente, sem lhe largar os olhos - escuta com paciência o que vou te dizer.

           - Baal Schem, inspirado por Deus, contou ao milionário a história do pacto com todos os pormenores, até à morte de Samuel, sob o disfarce de um mendigo, no hospital. 

            À proporção que se desenrolava a narrativa um terror indefinível apoderava-se de Nathan. Tremia-lhe o corpo como se  tivesse invadido repentinamente as mais perniciosas sezões (doenças), enquanto o rosto espavorido se lhe tornava lívido como o de um cadáver. Passava e repassava a mao pela cabeleira grisalha empastada de suor. Percebeu que o rabi, senhor de todos os segredos, desfiava as baixezas, pecados e ingratidões de sua vida. 

            E o rabi, ao concluir a narrativa, percebendo o efeito de suas palavras, voltou a perguntar-lhe com ironia patente na expressão: 

             - Então meu filho? Continuas na ilusão de que nada tens a pedir? 

*    *    *

            Ao deixar a presença do milagroso Baal Schem, Nathan estava completamente mudado. Vendeu tudo o que possuía, distribuiu todos os seus bens pelos pobres e partiu pelo mudo a socorrer os infelizes e a praticar o bem. Tornou-se um bom, um justo. O sacrifício de Samuel não fora inútil. Nathan encontrara no arrependimento o caminho da eterna salvação.

*    *    *

            Posso concluir, ó meu caro "góim"? Posso concluir? Esse velho, andrajoso, cujo aspecto infundia lástima e que há pouco cruzou o nosso caminho, era exatamente Nathan, aquele que fora outrora o mais temido dos banqueiros judeus. 

            Bem dizia Hilel, o santo: 

           - Por mais rico, por mais poderoso, por mais forte e mais feliz que seja o homem, terá sempre cem mil coisas a pedir a Deus. 

            - Scholem Aleicheim! 


NOTA:  Esta é uma das muitas lendas israelitas inspiradas na vida exemplar e misteriosa do milagroso Baal Schem.


OS TÍTULOS DO CANDIDATO

 


     Certo rapaz, sem grandes predicados, apresentou-se ao "Riziner" (morto em 1850 e manifestou o desejo de ser ordenados rabi. O "Riziner" interrogou-o sobre a sua maneira de proceder. Sobre  suas predileções e o candidato, com pueril volubilidade, alegou, a seu favor, os seguintes títulos:

       - Visto-me sempre de branco; bebo só água; prego cravos no meu calçado para me mortificar. E faço mais ainda: deito-me despido na neve e mando o zelador da sinagoga dar-me, todos os dias, quarenta chicotadas nas costas. 

         Nisso um cavalo branco entrou no pátio, bebeu água e estirou-se no chão coberto de neve.

         - Repara - aconselhou o "Riziner", batendo no ombro do jovem - Repara! Aquele animal que ali está,é branco, bebe só água, tem cravos nas ferraduras, deita-se na neve e apanha mais de quarenta chicoteadas por dia. Entretanto não passa de um simples cavalo. 

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Esta narrativa aparece em Lewis Browne, ob. cit., página 502. Para muitos educadores a advertência rude e indelicada do "Riziner" não pode servirde modelo. Reveste-se de certa grosseria e longe de educar, avilta o discípulo a aniquila-o mortalmente. É dever do mestre respeitar o aluno apesar de todos os erros e puerilidade ditados pela ignorância ou pela inexperiência da vida.

domingo, 2 de abril de 2023

RESIGNAÇÃO - Por Malba Tahan

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Tristezas do inferno me cingiram, laços de morte me surpreenderam. 

 Na angústia invoquei ao Senhor e clamei aos meu Deus; desde o seu templo ouviu a minha vós, aos seus ouvidos chegou o meu clamor perante suas faces.


         Era um dia de sábado, ao anoitecer. Havia já algumas horas que o doutor Meir se entretinha na escola pública explicando a Santa Lei e seus numerosos discípulos. Deleitavam-no aqueles estudos e a religiosa atenção com que suas palavras eram ouvidas. 

         Sua casa, entretanto, durante aquelas fugidias horas, hospedara o luto e a desesperação. Dois de seus filhos haviam morrido quase de repente e, de sua família, só a desolada mãe permanecia para chorar aos pés dos dous cadáveres. Infeliz mulher! Petrificada pela dor, contemplava imóvel aqueles dois corpos buscando neles, em vão, alguns indícios de vida; e vinha-lhes à mente o pobre marido que dentro em pouco iria defrontar o tremendo espetáculo. O respeito à vontade divina e a caridade de esposa deram à mísera uma força de alma. As maternas mãos estenderam um lençol sobre  aquele leito de morte onde os filhos amados repousavam. Cumprindo o piedoso mister a trise mãe passou-se ao quarto vizinho à espera do marido. 

           A note descer lentamente . Já, estrelas, sem conta, luziam pelas alturas sem fim. Volveu à casa o doutor e apenas transposta a soleira, indagou da sua esposa um tanto perturbado: 

           - E os filhos? 

          - Terão ido à escola - respondeu a mulher com voz trêmula e sumida, fitando o céu, evitando o olhar do marido. 

           - Parece que não os vi entre os alunos. 

       A mulher, sem lhe responder, apresentava-lhe o vinho e o círio para i Avdalá com que implorar as bênçãos do céu para a nova semana. 

          Cumpriu o doutor o religioso ato e com crescente ânsia bradou: 

          - Mas e os filhos, mulher!

          - Saíram talvez para alguma incumbência familiar. 

            Isto dizendo punha diante do marido há longo tempo em jejum, umas fatias de pão.

           Provou o doutor um pedacinho e tendo dado graças a Deus, a quem devemos todos os bens terrenos, exclamou: 

         - Como tardam hoje os nossos filhos! Sempre é certo que não sabes de nada, ó esposa minha? Por que me pareces tão triste? 

           - Eu, meu esposo, preciso de um conselho teu.

          - Que é? 

         Ontem um amigo nosso me procurou e deixou sob minha guarda algumas joias. vem ele agora reclamá-las. Ai de mi ! Não contava que viesse tão cedo. Devo restituí-las? 

          - Ó minha esposa! Essa dúvida é pecaminosa! 

          - Mas já me afizera tanto àquelas joias!

          - Não te pertencia. 

          - Mas eu queria-lhes tanto bem. Talvez tu também...

          -Ó mulher! - exclamou atônito o marido que começava a penar, com temor, nalguma coisa estranha e terrível - Que dúvidas! Que penamentos! Sonegar um depósito, coisa sagrada!

            - É isso mesmo - balbuciava chorosa a mulher - Muito preciso de teu auxílio para fazer esta dolorosa restituição. Vem ver as jóias depositadas. 

            E as suas mãos geladas tomaram das mãos do atônito marido e conduziram-no à câmara nupcial e ergueram as franjas do lençol fúnebre. 

            - Aqui estão as joias. Reclamou-as Deus!

         Diante da quela visão o pobre pais prorrompeu em grandíssimo pranto, e exclamou golpeado pela dor:

           - Ó filhos meus, filhos de minha alma, doçura da minha vida, luz dos meus olhos, é meus filhos!

             - Esposo meu. Não disseste, há pouco que é forçoso restituir o depósito quando reclama o seu dono legítimo? 

           Com os olhos marejados de lágrimas o sábio fitou a esposa cheio de admiração e de inefável ternura. 

            - Ó meu Deus - suspirou - Posso eu balbuciar  alguma queixa contra a Tua vontade? Deste-me, para escudo de minha vida, uma esposa religiosa e santa!

            E os dois infelizes prostraram-se a um só tempo, e por entre lágrimas repetiram as santas palavras de Jó: 

           - "Deus deu, Deus tirou. Bendito seja o seu santo nome!"


Este belíssimo conto figura em Yalkut, pagina 145. Cfr. Léon Berman, ob. cit., pagina 70. Vamos encontrar essa mesma narrativa em "Mar de histórias" de Aurélio Burque de Olanda e Paulo Ronai, numa excelente tradução do erudito Rabino Dr. H. Lemle. 

Procure no vocabulário as palavras: Meis e Avdalá. Ao relatar o caso em tamudista acrescenta: "Havia epidemia na cidade e, ao sair de casa, pela manhã, notou o Rabi que seusfilhos estavam triste e abatidos". 

Bem diversa é a forma adotada no livro O talmude" de Moisés Beilinson e Dante Lettes, tradução de Vicente Ragognetti, pagina 55. 


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luagares mal assombrados

UMA DIVISÃO DE CAMELOS - Por Malba Tahan

 


A singular aventura dos 35 camelos que deviam ser repartidos por tês árabes. Beremis Samir efetua uma divisão que parecia impossível, contentando plenamente os três querelantes. 
No final obtivemos um luro inesperado co a transação.

        Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremis, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista. 

         Encontramos, perto de um antigo caravançará (Caravançará é um refúgio construído pelo governo e por pessoas piedosas à beira do caminho, para servir de abrigo aos peregrinos. Uma espécie de rancho de grandes dimensões em que se acolhiam caravanas.) meio abandonado, três homens que discutiam calorosamente ao pé de um lote de camelos. 

           Por entre pragas e impropérios gritavam possessos, furiosos: 

           - Não pode ser! 

           -Isto é um roubo!

           - Não aceito!

           O inteligente Beremis procurou informar-se do que se tratava. 

         - Somos irmãos - esclareceu o mais velho - e recebemos, como herança, esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte e ao Harim, o mais moço, deve tocar, apenas a noma parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos, e cada partilha proposta, segue-se recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio. Como fazer a partilha se a terça parte  e a nona parte de 35 também não são exatas? 

          - É muito simples - atalhou, o "home que calculava", - Encarrego-me de fazer, com justiça, essa divisão, se permitires que eu junte aos 35 camelos da herança, este belo animal que, em boa hora, aqui nos trouxe!

           Neste ponto, procurei intervir na questão: 

           - Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?

           - Não se preocupe com o resultado, ó "bagdali"! - replicou-me em voz baixa  Beremis. - Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar. 

          Tal foi a segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo "jamal" (jamal - uma das muitas denominações que os árabes dão ao camelo). que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.

            - Vou, meus amigos - disse ele, dirigindo-se aos três irmãos - fazer a divisão justa e exata dos camelos que são agora, como vêem, em número de 36. 

            E, voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou: 

            - devias receber meu amigo, a metade de 35, isto é 17 e meio, Receberás a metade de 36 e, portanto 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão!

             E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou: 

            - E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação. 

             E disse, por fim, ao mais moço: 

             E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pais, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, isto é 4. O teu luro foi igualmente notável. Só tens que agradecer -me pelo resultado!

            E concluiu: 

            Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir - partilha em que todos os três saíram lucrando - couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que d´um resultado (18 + 12 + 4) de 34 camelos. Dos 36 camelos, sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabe, ao "bagdal" meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da herança!

           - Sois inteligente, ó estrangeiro! - exclamou o mais velho dos tês irmãos - Aceitamos a vossa partilha na certeza de que foi feita com muita justiça e equidade!

           E o astucioso Beremis - o !"home que calculava" tomou logo posse de um dos mais belos "jamales" do grupo e disse-me entregando pela rédea o animal que me pertencia: 

           - Poderá agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho um outro, especialmente para mim! 

           E continuamos a nossa jornada para Bagdá. 


O BRASEIRO DO RIO CEDRON - Por Malba Tahan

      Um judeu rico e impiedoso apostou, de uma feita, em como ninguém seria capaz de passar, na época de inverno, uma noite inteira dentro ...